segunda-feira, outubro 31, 2005
sábado, outubro 29, 2005
sexta-feira, outubro 28, 2005
Na dança do poder II.
recortes e releituras:
O príncipe deve violar a palavra e todas as regras de fé, de caridade, humanidade e religião embore as louve em palavras, porque os homens admiram a fachada da virtude e não se importam de ser iludidos pelos poderosos. Admiram o êxito e, se a parência fôr boa, não buscam a realidade que está por detrás (cap XVIII, Príncipe, Maquiavel): "A massa é conquistada com aparência e êxito".
O príncipe deve violar a palavra e todas as regras de fé, de caridade, humanidade e religião embore as louve em palavras, porque os homens admiram a fachada da virtude e não se importam de ser iludidos pelos poderosos. Admiram o êxito e, se a parência fôr boa, não buscam a realidade que está por detrás (cap XVIII, Príncipe, Maquiavel): "A massa é conquistada com aparência e êxito".
Eric Voegelin, Estudos de ideias políticas, ed. Áticas
as quatro horas seguintes
“Passada a porta, deixo o que trago vestido e cheio de lama e de lodo e envergo vestes régias. Vestido com garbo, entro na companhia dos antigos e aí sou recebido com gentileza e partilho do alimento que é verdadeiramente meu e para o qual nasci. Não me assusto de falar com eles e de lhes pedir as razões dos seus actos; e eles, por humanidade, respondem-me. Durante as quatro horas seguintes não sinto aborrecimento, esqueço todas as penas, não tenho medo da pobreza nem da morte.”
Nicolau Maquiavel
Nicolau Maquiavel
Na dança do poder I.
Na falta da graça divina a fama reina: muitos são chamados, poucos os escolhidos. Contratam-se historiadores ou escrevem-se autobiografias, enfim, o poder e a politica reduzem-se à auto-expressão individual de egos insuflados ávidos pela salvação eterna.
- Ah, menino franzino de testa grande! Sim, tu! Levanta-te e dança! Fá-los rir.
quinta-feira, outubro 27, 2005
Aqui vai uma dose de estupefaciente intelectual para adormecer os escrúpulos:
"se não fôr possível tornar as coisas boas, pelo menos é possível fazê-las menos más"
adenda: Como diria Eric Voegelin, conformar-se com a imperfeição é um antídoto para o perfeccionismo, mas pode também tornar-se em atitude de condescendência para com a perversão.
"se não fôr possível tornar as coisas boas, pelo menos é possível fazê-las menos más"
Tomás Moro
adenda: Como diria Eric Voegelin, conformar-se com a imperfeição é um antídoto para o perfeccionismo, mas pode também tornar-se em atitude de condescendência para com a perversão.
quarta-feira, outubro 26, 2005
Frase do dia:
Qual é a frase do dia?
PS: Será ela a constatação de que eu não sei qual é a frase do dia, ou é a constatação de que eu desejo que alguém me diga qual é? Ou será que é a sua afirmação através de uma interrogação?
segunda-feira, outubro 24, 2005
No assombro ante o Outro e os outros está a poesia: foi e é o gérmen, a semente primeira. Regressar a ela será regressar à origem.
O conhecimento poético é o único que nos resta frente ao progressivo aniquilamento da visão religiosa ou frente à dispersão do conhecimento científico. Os grandes sistemas filosóficos desapareceram. A filosofia analítica se encontra em um "impasse", daí que filósofos como Robert Nozik tentem encontrar uma via de saída. Quanto à fenomenologia e seus herdeiros: não há ninguém depois de Sartre. Seus sucessores são comentaristas de Heidegger, como Foucault e Derrida. E que dizer do marxismo? Converteu-se em uma escolástica universitária nos países capitalistas do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos (a moda já passou na Europa), enquanto que no Leste é uma aborrecida ideologia estatal. Nas grandes religiões, a visão poética foi e é central; o mesmo devo dizer dos sistemas filosóficos do passado. Por isto, creio que o que pode dar um pouco de frescor espiritual a nossas vidas é o conhecimento poético. Não digo que a poesia possa substituir a religião ou a filosofia: digo que é a origem da religião e da filosofia. No assombro ante o Outro e os outros está a poesia: foi e é o gérmen, a semente primeira. Regressar a ela será regressar à origem.
Uma relação análoga à que existe entre poesia e filosofia aparece entre a poesia e o mito. A poesia tem sido criadora de mitos e foram os poetas os que converteram os mitos informes em poemas e obras de arte. Esta função da poesia não desapareceu em nossa época. A poesia tem rejuvenescido os mitos - Eliot em um extremo e, no outro, Joyce, para falar tão-somente de poetas de língua inglesa, ainda que também se possa citar Rilke, Apollinaire e outros.
[…]
Antes de tudo: os mitos são realidades. O são de uma dupla maneira: em primeiro termo, por terem vida própria e, em seguida, por expressarem, quase sempre de uma maneira metafórica e cifrada, uma dada situação e que corresponde a todo o grupo social. Por exemplo: a bomba atómica reintroduziu na consciência moderna o antigo mito da extinção do universo. Nossa sociedade não é a primeira que teme o desaparecimento do mundo em um grande cataclismo. Recorde os aztecas, os estóicos ou os cristãos do Ano Mil. Em quase todas as religiões figura uma revelação - um apocalipse - relativa ao fim do mundo. Esse fim pode ser definitivo, como no cristianismo ou no Islã, ou cíclico, como no budismo e entre os estóicos. O assombroso é que a sociedade do progresso e da ciência, precisamente através da ciência e do progresso, tenha descoberto, por sua vez, a velha imagem da destruição cósmica. A diferença com o passado não é menos reveladora que a semelhança: para os antigos, a catástrofe confirmaria a verdade da revelação, enquanto que para os modernos a explosão nuclear nega as suposições de nosso mundo: a razão, o progresso, a ciência. Também é assombroso que os poetas tenham dito sempre o que agora descobrem os psicólogos e os sociólogos: a presença da violência mortífera, agarrada às dobras da alma humana ou nas entranhas da sociedade. Voltamos a sentir como os antigos, mesmo que pensemos de uma maneira distinta. Isto quer dizer que em nossa imagem do fim do mundo há uma fractura: foi uma visão religiosa e agora é uma possibilidade filha da ciência moderna e da violência ancestral do animal humano.
O conhecimento poético é o único que nos resta frente ao progressivo aniquilamento da visão religiosa ou frente à dispersão do conhecimento científico. Os grandes sistemas filosóficos desapareceram. A filosofia analítica se encontra em um "impasse", daí que filósofos como Robert Nozik tentem encontrar uma via de saída. Quanto à fenomenologia e seus herdeiros: não há ninguém depois de Sartre. Seus sucessores são comentaristas de Heidegger, como Foucault e Derrida. E que dizer do marxismo? Converteu-se em uma escolástica universitária nos países capitalistas do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos (a moda já passou na Europa), enquanto que no Leste é uma aborrecida ideologia estatal. Nas grandes religiões, a visão poética foi e é central; o mesmo devo dizer dos sistemas filosóficos do passado. Por isto, creio que o que pode dar um pouco de frescor espiritual a nossas vidas é o conhecimento poético. Não digo que a poesia possa substituir a religião ou a filosofia: digo que é a origem da religião e da filosofia. No assombro ante o Outro e os outros está a poesia: foi e é o gérmen, a semente primeira. Regressar a ela será regressar à origem.
Uma relação análoga à que existe entre poesia e filosofia aparece entre a poesia e o mito. A poesia tem sido criadora de mitos e foram os poetas os que converteram os mitos informes em poemas e obras de arte. Esta função da poesia não desapareceu em nossa época. A poesia tem rejuvenescido os mitos - Eliot em um extremo e, no outro, Joyce, para falar tão-somente de poetas de língua inglesa, ainda que também se possa citar Rilke, Apollinaire e outros.
[…]
Antes de tudo: os mitos são realidades. O são de uma dupla maneira: em primeiro termo, por terem vida própria e, em seguida, por expressarem, quase sempre de uma maneira metafórica e cifrada, uma dada situação e que corresponde a todo o grupo social. Por exemplo: a bomba atómica reintroduziu na consciência moderna o antigo mito da extinção do universo. Nossa sociedade não é a primeira que teme o desaparecimento do mundo em um grande cataclismo. Recorde os aztecas, os estóicos ou os cristãos do Ano Mil. Em quase todas as religiões figura uma revelação - um apocalipse - relativa ao fim do mundo. Esse fim pode ser definitivo, como no cristianismo ou no Islã, ou cíclico, como no budismo e entre os estóicos. O assombroso é que a sociedade do progresso e da ciência, precisamente através da ciência e do progresso, tenha descoberto, por sua vez, a velha imagem da destruição cósmica. A diferença com o passado não é menos reveladora que a semelhança: para os antigos, a catástrofe confirmaria a verdade da revelação, enquanto que para os modernos a explosão nuclear nega as suposições de nosso mundo: a razão, o progresso, a ciência. Também é assombroso que os poetas tenham dito sempre o que agora descobrem os psicólogos e os sociólogos: a presença da violência mortífera, agarrada às dobras da alma humana ou nas entranhas da sociedade. Voltamos a sentir como os antigos, mesmo que pensemos de uma maneira distinta. Isto quer dizer que em nossa imagem do fim do mundo há uma fractura: foi uma visão religiosa e agora é uma possibilidade filha da ciência moderna e da violência ancestral do animal humano.
Octavio Paz
[Trechos de "Poesia de circunstancias", entrevista concedida a César Salgado. Revista Vuelta # 138. México. Maio de 1988.]
domingo, outubro 23, 2005
sábado, outubro 22, 2005
sexta-feira, outubro 21, 2005
Méden àgan?
Estultices de um ego insuflado, mas “nada em excesso”:
- Ah!, se eu quisesse sacudir a abóbada do céu, bastar-me-ia estender as mãos! Mas não o farei, acudiu-me ao espírito a ideia de que poderia causar uma tempestade.
terça-feira, outubro 18, 2005
segunda-feira, outubro 17, 2005
Por isso, precisamente, porque de nada serve.
Um pedante, que viu Sólon a chorar a morte de um filho, disse-lhe: "Para que é que choras assim, se isso nada te serve?" E o velho sábio respondeu-lhe: "Por isso, precisamente, porque de nada serve".(...)
Estou convencido de que resolviríamos muitas coisas se, saindo todos para a rua, e pondo a manifesto as nossas mágoas, talvez elas resultassem numa só dor comum, pondo-nos então todos a chorá-la em conjunto e a dar gritos ao céu e a clamar por Deus. Mesmo que não nos visse, ouvir-nos-ia.(...)
Um Miserere, cantado em comum por uma multidão, maltratada pelo destino, vale tanto como uma filosofia. Não basta curar a peste, há que a saber chorar. Sim, tem que se saber chorar! E, talvez seja esta a sabedoria suprema. Para quê? Perguntai a Sólon.
Estou convencido de que resolviríamos muitas coisas se, saindo todos para a rua, e pondo a manifesto as nossas mágoas, talvez elas resultassem numa só dor comum, pondo-nos então todos a chorá-la em conjunto e a dar gritos ao céu e a clamar por Deus. Mesmo que não nos visse, ouvir-nos-ia.(...)
Um Miserere, cantado em comum por uma multidão, maltratada pelo destino, vale tanto como uma filosofia. Não basta curar a peste, há que a saber chorar. Sim, tem que se saber chorar! E, talvez seja esta a sabedoria suprema. Para quê? Perguntai a Sólon.
Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida
sexta-feira, outubro 14, 2005
Five hundred years ago, Leonardo Da Vinci solved an ancient astronomical riddle: the mystery of Earthshine.
When you think of Leonardo Da Vinci, you probably think of the Mona Lisa or 16th-century submarines or, maybe, a certain suspenseful novel. That's old school. From now on, think of the Moon.
When you think of Leonardo Da Vinci, you probably think of the Mona Lisa or 16th-century submarines or, maybe, a certain suspenseful novel. That's old school. From now on, think of the Moon.
Little-known to most, one of Leonardo's finest works is not a painting or an invention, but rather something from astronomy: He solved the ancient riddle of Earthshine.
in The Da Vinci Glow by Tony Phillips
quinta-feira, outubro 13, 2005
A densidade do presente
Hoje, vou exercitar a minha perícia augural: amanhã, o hoje será ontem.
Horácio
"Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno-as todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro, nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei – a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão.
Risível consolo – que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão."
Stig Dagerman, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer, Fenda
terça-feira, outubro 11, 2005
"Ce qui reste d'un écrivain, ce qui doit rester de lui, ce sont ses livres. Sinon, ce n'était pas un écrivain mais juste l'éphémère acteur de phénomènes de société."
enviado pelo J
"Fui para a minha quinta de Nomento para fugir…imagina a quê? À cidade? Não, a uma acesso de febre, de uma febre bastante insidiosa que já começara a aguarrar-me com força. O médico dizia que os indícios lá estavam: pulsação acelerada e irregular, completa alteração do ritmo normal. Assim, mandei imediatamente aprestar o carro e, embora Paulina me tentasse reter, teimei em partir para o campo. Veio-me à boca um dito do meu estimado Galião que um dia, ao apanhar na Acaia um acesso de febre, embarcou de imediato clamando que o mal estava no clima e não no seu corpo. Repeti essas mesmas palavras à minha Paulina, que está sempre a recomendar-me cuidado com a saúde. E como sei que a sua existência está totalmente dependente da minha, para velar por ela tenho de começar a velar por mim próprio. A velhice já me tornara capaz de afrontar mil e um perigos; agora estou perdendo o benefício de idade, pois veio-me à ideia que neste velho que eu sou existe um adolescente que é necessário poupar. Em suma, não consigo de Paulina que me ame com mais coragem, mas ela consegue de mim que eu me cuide com mais atenção."
Séneca, Cartas a Lucílio, Gulbenkian
E assim Habito numa das passagens mais belas de sempre, convalescendo desse ruído televisivo que faz da vida um circo.
Horácio
Horácio
sexta-feira, outubro 07, 2005
Obrigado Hermeto
Hermeto, ao vivo, é pura criação. Pedagogo, humanista, multi-instrumentista, compositor fabuloso, Hermeto é um homem que contagia com a sua energia, com a sua dis-posição, com a sua alegria e vontade de viver. A sua música, ao vivo, nasce e habita na incessante tensão entre o presente e o futuro: este por-vir, esta “vontade de chegar” que nos faz antecipar mas que é sempre um “tá chegando”. É neste ainda-não, que Hermeto agita as mãos, é neste transcender que Hermeto improvisa – é neste jogo de antecipar e estar aberto ao acontecer que o tempo se patenteia como o que de mais precioso temos e por isso Hermeto faz de cada instante o melhor instante possível e o oferece ao público. Obrigado Hermeto. Inesquecível! Sublime!
Hermeto Pascoal teclados e muito mais Fabio Pascoal percussão Marcio Bahia bateria Itiberê Zwarg e-bass Vinícius Dorin saxes e flauta André Marques piano
Fui ao baú, da Fonte, recordar alguns textos antigos de Hermeto:
Nascido no Estado pobre de Alagoas, no Nordeste do Brasil, ainda criança Pascoal foi atraído pelo que chamou de "a beleza sagrada e abertura da música".
Mas como tinha problemas visuais associados com sua condição de albino, os professores de música não o quiseram como aluno, dizendo-lhe que não seria capaz de ler ou escrever partituras.
Como resultado, teve que aprender a tocar instrumentos sozinho e é, em suas próprias palavras, "completamente autodidacta". Ele começou aos 7 anos com o acordeão, que ele tocava nos bailes do interior. Adolescente, mudou-se para a cidade grande de Recife, quando passou a tocar em programas de rádio.
"Não tínhamos nada lá na roça, nem rádio, nem piano, nem nada, então me sentia um órfão", lembra-se. "Até fazer 14 anos, eu tocava mais para os bichos, e essa experiência é parte da minha essência."
"Eu acredito em Deus e na música e no povo, no mundo."
Trecho de uma entrevista ao génio Hermeto Pascoal.
Trecho de uma entrevista ao génio Hermeto Pascoal.
Eu toco inclusive este aqui (mostra um copo com água) que é instrumento que eu toco muito no disco, eu toco uma música em homenagem a Miles Davis, aquele trompetista genial americano, meu amigo maravilhoso, eu toco uma música dedicada pra ele com esse instrumento aqui...com água, sendo que é com panela, com chaleira... Depois eu toco e respondo com trompete Flugelhorn, porque no disco do Miles que eu gravei com ele duas músicas minhas, que eu assovio e toco órgão para ele tocar também.
Então em retribuição à ele, em outro plano, a alma...é alma com alma; eu toquei o trompete imaginando...e eu brincava tocando no estúdio, e eu falava mentalmente com ele: "Agora eu sou o Miles branco da terra!" (risos) E ele dizia "Você tá tocando muito bem!", e eu digo "Legal! É por aí..." (risos). São essas conversas que acontecem na música quando a gente compõe e quando a gente tá tocando...
Então o Sr. é um bruxo mesmo, né?
É... cada um fala um negócio...
O Sr. acredita em quê?
Eu acredito em Deus e na música e no povo, no mundo.
O Sr. tem religião?
Tenho, é a música. Noutra religião não porque quando as pessoas vão para uma religião, elas vão porque saíram de uma coisa ruim, geralmente. Porque estavam doentes, querem se curar, ficar boas...as religiões estão hoje viradas propagandas. No meu tempo até que você podia aceitar, agora eu tô vendo nêgo com a vaidade acima das religiões. A vaidade abafando um pouco as religiões. Deus não botou nenhuma religião na Terra, só uma coisa, a religião que Deus botou no mundo é aquela coisa que você abraça pra fazer; o jornalismo, a música, qualquer profissão é a religião do ser humano...não tem coisa não. Quanto mais se fala em Deus, menos se pensa nele. Tem que se pensar mais em Deus.
…
Como foi que o Sr. aprendeu a escrever música?
Eu aprendi com a vida. A vida foi o meu professor. Tem até um disco meu que eu gravei, que na contracapa eu escrevi que o meu professor é o meu dom. Meu dom é o meu professor. Não é que foi, é que nunca existe a palavra "foi" e nem nunca existe futuro. Quando eu digo futuro é apenas força de expressão; o futuro é o presente, sempre o presente. O futuro é a vontade de chegar, não é isso? A gente tá chegando mas está sempre no presente.
Então eu sou assim: eu sou um cara imprevisível para fazer, eu não premedito nada. Por exemplo, tocando aqui com o pessoal, vocês viram como é que foi. A gente não ensaiou nada, não quer dizer com isso que seja uma coisa desorganizada, é uma coisa criativa. Eu sou o músico da feira! Toquei em porta da Igreja, toquei em casamento, toquei em enterro, toquei em tudo isso, toquei à noite pra dançar, toquei em baile... no tempo em que o cara dizia assim: "Se você não tocar essa música aqui, eu vou rasgar seu fole com a peixeira, seu cabra! Galego da peste! Você tem que tocar essa música aí!" (risos). Eu sou desse tempo...tudo enriqueceu muito a minha cabeça, pra fazer esse trabalho que eu chamo hoje em dia de Música Universal.
quinta-feira, outubro 06, 2005
Como é possível, pergunto eu, ter igual admiração por Diógenes e por Dédalo? Qual destes dois te parece ser um sábio? O inventor da serra? Ou o filósofo que, vendo um garoto a beber água pelas mãos em concha, partiu no mesmo instante o copo que tirara da sacola, e a si próprio se repreendeu, dizendo: “Oh! Como sou estúpido em andar carregado de objectos inúteis!”?
Séneca, Cartas a Lucílio
quarta-feira, outubro 05, 2005
Há um ano, na fonte do Horácio, era assim:
O tear
...
Vai-se desfiando a pouco e pouco
e das pegadas deixadas brotam cores,
as cores que tingem a aurora do novo dia que se a-guarda.
No tear da vida, já estiraçado,
pente acima pente abaixo,
entrelaçando-se sobre si mesmo,
vai-se dando corpo ao tempo,
tempo à existência,
existência de ser, assim
mortal.
Assim Habito
Horácio
...
Vai-se desfiando a pouco e pouco
e das pegadas deixadas brotam cores,
as cores que tingem a aurora do novo dia que se a-guarda.
No tear da vida, já estiraçado,
pente acima pente abaixo,
entrelaçando-se sobre si mesmo,
vai-se dando corpo ao tempo,
tempo à existência,
existência de ser, assim
mortal.
Assim Habito
Horácio
terça-feira, outubro 04, 2005
segunda-feira, outubro 03, 2005
“ A sinfonia é o mundo! A sinfonia deve abranger tudo!”
Toda grande obra de arte, no fundo, opõe-se à análise. Para a estética, esse é um valor todo especial, só conferido a uns poucos mestres. Gustav Mahler concretiza essa plenitude sonora e humana. E por isso, ao ouvi-lo, abstraio a música para me concentrar no artista que a determina. Não se trata, aqui, apenas do caso Mahler, o compositor; mas da personalidade Mahler, para quem o humano está sempre em primeiro plano. Para mim, Mahler é um homem como só se encontra uma vez na vida. Muito mais do que um artista singular em toda a história da música, Mahler é uma das personagens mais importantes da história da civilização. Ele é um fenómeno da humanidade.
Mahler aparece relativamente pouco nas programações de concerto. Talvez justamente pelo forte conteúdo humano de sua música introvertida; ou, mais do que isso, pelo estado de espírito que essa música provoca. A apreciação de uma obra de arte desse quilate nunca é objectiva; é sempre subjectiva. Vemos no mundo e projectamos na arte aquilo que somos. Esta é a beleza da música: seu poder de comunicação com as pessoas. Diria que, diante de Mahler, é preciso ir além da apreciação fenomenológica.
O fenómeno Mahler concretiza uma gestalt, um todo muito maior do que aquele que se conhece superficialmente. Mahler transcende a música. Como Debussy, ele surge no limiar de uma época (viveu entre 1860 e 1911). Mahler, entretanto, não faz uma revolução. Ele não é moderno nem antigo. Mas, muito mais do que outros compositores, ele possui uma visão global e integradora da música. Nele, a música não se divide em classes (com quanta elegância ele emprega melodias populares europeias em várias de suas composições). Mahler, ao contrário, sintetiza estilos, tendências e técnicas. E mais: a vida.
A produção do génio austríaco abre-se a inúmeras interpretações. Os sentimentos que sua música evoca são densos, difíceis de ser denominados. Essa é uma obra de conotação profundamente filosófica. Encontra-se algo semelhante nas últimas óperas de Wagner, como Parsífal ou Tristão e Isolda.
A escrita de Mahler dá a cada nota um valor em si. Nesse sentido, sua Sintonia n.o 1, conhecida como Titã (título pesado e contrastante, a meu ver), é uma de suas páginas mais diáfanas e transparentes. A Titã poderia ser um balé: tem um carácter de dança como jamais ocorreu com qualquer outra sinfonia. Trata-se de verdadeira música ecológica, uma vivência sonora dos fenómenos da natureza, ainda que a partitura não siga nenhum programa descritivo. Já aí Mahler aspira à música absoluta.
Música, como todas as ocorrências nas artes, é o resultado de variadas relações e forças. Música é tempo. Tempo é movimento. Movimento é tensão. Assim, a compreensão de uma obra complexa como a de Gustav Mahler passa forçosamente pela leitura de suas variadas manifestações formais e estruturais. Perceber conceitos de ordem temporal e classificar suas características mais evidentes e análogas nos ajuda a explicar certas situações emocionais, ou psíquicas, geradas por essa música.
O caminho para a interpretação de uma obra musical de tal porte deve partir sempre da análise. Mas, ao se penetrar o interior de um texto como o de Gustav Mahler, o som deixa de ser objecto mensurável para se tornar força criativa. Sua arte rompe limites, invade um novo espaço sonoro e psíquico. A escuta transcende a sintaxe dos sons. Sinfonias como a de n. 2, intitulada Ressurreição, ou de n. 9, por exemplo, requerem muito mais do que a percepção artística de um fenómeno físico, sensível ao nosso conhecimento racional. Elas exigem uma audição espiritual, por assim dizer.
Do ponto de vista formal, Mahler alcança, em sua Sinfonia n.o 5, grande expressão dramática pelo uso e distribuição de elementos de informação (o inesperado) e redundância (a unidade). Quando o índice de redundância é muito alto, como na 5ª, os elementos imprevisíveis se destacam e dão maior densidade à partitura. Os contrastes criam um conflito aparente entre os elementos, o que confere a essa sinfonia a força de um drama ou de uma ópera, ainda que ela não contenha parte vocal, como é o caso das 3ª e 4ª sinfonias. Já nas 6ª e 7ª sinfonias, as diferenças entre os contrastes são muito maiores, e o resultado é uma música de verdadeira dimensão trágica. Em obras como essas, cada episódio envolve a escuta e a atenção como um longo colóquio, muito intenso. Nesse discurso puramente sonoro, Mahler atinge o universal: a expressão da eternidade.
Gustav Mahler deixou dez sinfonias, praticamente (a última ficou inacabada). Mas, para mim, sua obra máxima, a que melhor traduz sua natureza interior, é A Canção da Terra. O tema poético do texto de Hans Bethge ganha, em música, a amplitude de um hino ao destino humano. É, de tudo o que Mahler escreveu, o mais profundo. Uma partitura de grande simplicidade -- grandes coisas nas artes são sempre simples – que não conhece limites emocionais. A obra pede dois cantores. Mas só conseguem interpretá-la, de facto, solistas muito enriquecidos emocionalmente. Mahler morreu dois anos depois de concluir essa obra eterna (e o eterno se esvanece aos poucos no obstinato do último verso: Ewig... Ewig... Ewig...")
Como acontece com frequência na leitura de uma partitura de Mahler, é interessante notar que, apesar de toda a complexidade de sua obra, pressente-se sempre grande parte do que está por ocorrer na composição. Sua música tem algo de previsível. E, no entanto, ela sempre me parece inédita. É como se Mahler, com seu fantástico estilo individual, obedecesse a leis eternas. E esse seu mistério, penso, é o que o torna inimitável.
A obra de Gustav Mahler é humanamente tão importante, provoca tal mergulho interior, que nos faz questionar toda a existência. Diria, num grau último de análise, que sua música se faz espelho da vida. Ao se ouvir, ou melhor, ao se viver essa música, sofremos todo seu conteúdo humano e psicológico. Como já se disse a respeito da integral de suas sinfonias, "Was uns mit mysticher Gewalt hinanzieht..." (Eis o que nos atrai com força mística). E o que haveria de mais místico do que a eternidade? Poucos são os fenómenos na vida que nos levam a um estado tão misterioso como esse. O testamento musical deixado por Mahler me emociona profundamente, a ponto de muitas vezes não me deixar dormir.
de Hans-Joachim Koellreuter
publicado na revista "Bravo!", edição de outubro de 1999, depoimento registrado por Regina Porto
publicado na revista "Bravo!", edição de outubro de 1999, depoimento registrado por Regina Porto
domingo, outubro 02, 2005
A facticidade
Deitei suavemente a cabeça sobre a terra humedecida, a mim não me coube nenhum outro porto seguro como herança senão ela. De facto, porque fomos lançados? De facto, que fardo é este que trago? Inebriado pela perpetuidade de mim mesmo, faleço lentamente. De facto! E é nesta gesta senciente que me invento, inventando uma outra estética para transcender o inelutável porvir do tempo.
A terra não é um simples canteiro por onde passeio; tampouco uma montanha que se avista ao longe, como coisa ainda, e que se almeja escalar. Ela não é calculável, nem mensurável por uma outra escala que não seja a da inefabilidade. E porque dizer é medir o mundo com palavras, sem socorro, calo-me… para escutar a voz que emana das profundezas da terra: a voz do silêncio.
Assim Habito
Horácio