segunda-feira, outubro 03, 2005

“ A sinfonia é o mundo! A sinfonia deve abranger tudo!”



Toda grande obra de arte, no fundo, opõe-se à análise. Para a estética, esse é um valor todo especial, só conferido a uns poucos mestres. Gustav Mahler concretiza essa plenitude sonora e humana. E por isso, ao ouvi-lo, abstraio a música para me concentrar no artista que a determina. Não se trata, aqui, apenas do caso Mahler, o compositor; mas da personalidade Mahler, para quem o humano está sempre em primeiro plano. Para mim, Mahler é um homem como só se encontra uma vez na vida. Muito mais do que um artista singular em toda a história da música, Mahler é uma das personagens mais importantes da história da civilização. Ele é um fenómeno da humanidade.

Mahler aparece relativamente pouco nas programações de concerto. Talvez justamente pelo forte conteúdo humano de sua música introvertida; ou, mais do que isso, pelo estado de espírito que essa música provoca. A apreciação de uma obra de arte desse quilate nunca é objectiva; é sempre subjectiva. Vemos no mundo e projectamos na arte aquilo que somos. Esta é a beleza da música: seu poder de comunicação com as pessoas. Diria que, diante de Mahler, é preciso ir além da apreciação fenomenológica.

O fenómeno Mahler concretiza uma gestalt, um todo muito maior do que aquele que se conhece superficialmente. Mahler transcende a música. Como Debussy, ele surge no limiar de uma época (viveu entre 1860 e 1911). Mahler, entretanto, não faz uma revolução. Ele não é moderno nem antigo. Mas, muito mais do que outros compositores, ele possui uma visão global e integradora da música. Nele, a música não se divide em classes (com quanta elegância ele emprega melodias populares europeias em várias de suas composições). Mahler, ao contrário, sintetiza estilos, tendências e técnicas. E mais: a vida.



A produção do génio austríaco abre-se a inúmeras interpretações. Os sentimentos que sua música evoca são densos, difíceis de ser denominados. Essa é uma obra de conotação profundamente filosófica. Encontra-se algo semelhante nas últimas óperas de Wagner, como Parsífal ou Tristão e Isolda.


A escrita de Mahler dá a cada nota um valor em si. Nesse sentido, sua Sintonia n.o 1, conhecida como Titã (título pesado e contrastante, a meu ver), é uma de suas páginas mais diáfanas e transparentes. A Titã poderia ser um balé: tem um carácter de dança como jamais ocorreu com qualquer outra sinfonia. Trata-se de verdadeira música ecológica, uma vivência sonora dos fenómenos da natureza, ainda que a partitura não siga nenhum programa descritivo. Já aí Mahler aspira à música absoluta.

Música, como todas as ocorrências nas artes, é o resultado de variadas relações e forças. Música é tempo. Tempo é movimento. Movimento é tensão. Assim, a compreensão de uma obra complexa como a de Gustav Mahler passa forçosamente pela leitura de suas variadas manifestações formais e estruturais. Perceber conceitos de ordem temporal e classificar suas características mais evidentes e análogas nos ajuda a explicar certas situações emocionais, ou psíquicas, geradas por essa música.



O caminho para a interpretação de uma obra musical de tal porte deve partir sempre da análise. Mas, ao se penetrar o interior de um texto como o de Gustav Mahler, o som deixa de ser objecto mensurável para se tornar força criativa. Sua arte rompe limites, invade um novo espaço sonoro e psíquico. A escuta transcende a sintaxe dos sons. Sinfonias como a de n. 2, intitulada Ressurreição, ou de n. 9, por exemplo, requerem muito mais do que a percepção artística de um fenómeno físico, sensível ao nosso conhecimento racional. Elas exigem uma audição espiritual, por assim dizer.

Do ponto de vista formal, Mahler alcança, em sua Sinfonia n.o 5, grande expressão dramática pelo uso e distribuição de elementos de informação (o inesperado) e redundância (a unidade). Quando o índice de redundância é muito alto, como na 5ª, os elementos imprevisíveis se destacam e dão maior densidade à partitura. Os contrastes criam um conflito aparente entre os elementos, o que confere a essa sinfonia a força de um drama ou de uma ópera, ainda que ela não contenha parte vocal, como é o caso das 3ª e 4ª sinfonias. Já nas 6ª e 7ª sinfonias, as diferenças entre os contrastes são muito maiores, e o resultado é uma música de verdadeira dimensão trágica. Em obras como essas, cada episódio envolve a escuta e a atenção como um longo colóquio, muito intenso. Nesse discurso puramente sonoro, Mahler atinge o universal: a expressão da eternidade.

Gustav Mahler deixou dez sinfonias, praticamente (a última ficou inacabada). Mas, para mim, sua obra máxima, a que melhor traduz sua natureza interior, é A Canção da Terra. O tema poético do texto de Hans Bethge ganha, em música, a amplitude de um hino ao destino humano. É, de tudo o que Mahler escreveu, o mais profundo. Uma partitura de grande simplicidade -- grandes coisas nas artes são sempre simples – que não conhece limites emocionais. A obra pede dois cantores. Mas só conseguem interpretá-la, de facto, solistas muito enriquecidos emocionalmente. Mahler morreu dois anos depois de concluir essa obra eterna (e o eterno se esvanece aos poucos no obstinato do último verso: Ewig... Ewig... Ewig...")

Como acontece com frequência na leitura de uma partitura de Mahler, é interessante notar que, apesar de toda a complexidade de sua obra, pressente-se sempre grande parte do que está por ocorrer na composição. Sua música tem algo de previsível. E, no entanto, ela sempre me parece inédita. É como se Mahler, com seu fantástico estilo individual, obedecesse a leis eternas. E esse seu mistério, penso, é o que o torna inimitável.

A obra de Gustav Mahler é humanamente tão importante, provoca tal mergulho interior, que nos faz questionar toda a existência. Diria, num grau último de análise, que sua música se faz espelho da vida. Ao se ouvir, ou melhor, ao se viver essa música, sofremos todo seu conteúdo humano e psicológico. Como já se disse a respeito da integral de suas sinfonias, "Was uns mit mysticher Gewalt hinanzieht..." (Eis o que nos atrai com força mística). E o que haveria de mais místico do que a eternidade? Poucos são os fenómenos na vida que nos levam a um estado tão misterioso como esse. O testamento musical deixado por Mahler me emociona profundamente, a ponto de muitas vezes não me deixar dormir.


de Hans-Joachim Koellreuter
publicado na revista "Bravo!", edição de outubro de 1999, depoimento registrado por Regina Porto

2 Comments:

Blogger Quelhas Mota said...

Viva ... já nos fazia falta!

1:39 da tarde  
Blogger Diafragma said...

Gostei muito de o ler, particularmente o que escreveu sobre o Mahler, o meu compositor favorito. Por isso, aconselho-o vivamente a comprar, se não tiver, os CDs da TELARC (aliás Super Audio CDs mas como são híbridos podem ler-se em leitor normal) que trás um 2º CD em que o maestro, Benjamin Zandler, explica toda a obra utilizando a própria orquestra. Muito interessante, pois permite-nos conhecer os meandros que passam despercebidos ao vulgar melómano.
Tomo ainda a liberdade de lhe acrescentar um post meu antigo, só para ilustrar o que seria viver em Viena em 1900...
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1896.
Mahler candidata-se a Director da Opera de Viena. Tem o apoio incontestado de Brahms, de Hans Rott, Freud e muitos outros mas a mulher de Wagner, Cosima, criou um lobby contra a sua nomeação por ele ser judeu.
Entretanto Mahler conhece a pianista Alma Schindler, a “mulher mais bonita de Viena”, filha do pintor Schindler, numa festa. Tinha ela 20 e poucos anos e vivia com o já famoso pintor Klimt uma paixão conhecida em Viena. Mahler apaixona-se por ela e escreve-lhe a sua “carta” de amor. O Adágio da futura 5ª Sinfonia (do filme Morte em Veneza), e Alma abandonou Klimt! Decide aliás abandonar a sua carreira de pianista e compositora de sucesso para se dedicar totalmente a Mahler. Anos mais tarde no entanto veio a tornar-se amante do arquitecto Gropius, o criador do famoso Grupo Bauhaus, e depois do pintor Kokoshka.
Entretanto o compositor Hans Rott (o tal que usava as suas próprias partituras como papel higiénico, quando comparava as suas obras com as dos seus contemporâneos Brahms, Wagner e Mahler ...), também amigo de Mahler, leva uma obra sua a Brahms para ter uma opinião. Brahms detestou e ele enlouqueceu de desgosto para o resto da vida. De regresso a casa no comboio accionou o alarme porque “alguém roubara os carris”. Salvou-se uma Sinfonia (lindíssima e tocada o ano passado no Coliseu).

6:53 da tarde  

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