quarta-feira, março 29, 2006

Poema da Alienação



Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não

Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser

O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo

“ma limonje ma limonjééé”

O meu poema corre nas ruas
com um quibalo podre à cabeça

oferecendo-se
oferecendo

“carapau sardinha motona
jí ferrera ji ferrerééé”

O meu poema calcorreia ruas
“olha a probíncia” “diááário”
e nenhum jornal traz ainda
o meu poema

O meu poema entra nos cafés
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda

“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”

O meu poema vem do Musseque
ao Sábado traz a roupa
à Segunda leva a roupa
ao Sábado entrega a roupa e entrega-se
à Segunda entrega-se e leva a roupa

O meu poema está na aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a passear
a fazer apetite a querer violar

O meu poema é quitata
no Musseque à porta caída duma cubata

“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”

O meu poema joga a bola despreocupado
no grupo onde todo o mundo é criado
e grita

“obeçaite golo golo”

O meu poema é contratado
anda nos cafezais a trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar

“managambééé”

O meu poema anda descalço na rua

O meu poema carrega sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando

“tué tué trr
arrimbuim puim puim”

O meu poema vai nas cordas
encontrou cipaio
tinha imposto, o patrão

esqueceu assinar o cartão
vai na estrada
cabelo cortado

“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”

picareta que pesa
chicote que canta

O meu poema anda na praça
trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da ignorância
O meu poema nada sabe de si
nem sabe pedir
O meu poema foi feito para se dar
para se entregar
sem nada exigir

Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim – preto
a cavalgar pela vida.

António Jacinto

5 Comments:

Blogger Fernando said...

Oi, Horácio,
É sempre assim. Fico um bom tempo sem aparecer e sou colhido/acolhido, com uma tempestade de qualidades e bom gosto. Beleza de poema, esse!
Também o que se antecipa.
Que felicidade!
Abraços
fernando cals

3:19 da manhã  
Blogger r.e. said...

não há dia em que entrar aqui não constitua um enriquecimento. um abraço, Horácio. J.

10:59 da tarde  
Blogger M. said...

Confesso que já há muito tempo que não vinha aqui. Encontro um poema lindíssimo e deixo um abraço.
M

12:40 da tarde  
Blogger Juno said...

Uma ode ao poema...ao que ele é e ninguém sabe..Porque não é o que o compõe,as palavras, que o definem ..esta muito bom bj

9:56 da tarde  
Blogger r.e. said...

preocupamo-nos sempre qualquer coisa quando entramos num lugar e está parado há muito tempo. espero que estejas bem, horácio. um abraço. J.

7:55 da tarde  

Enviar um comentário

<< regressar...

eXTReMe Tracker