sexta-feira, setembro 30, 2005

Efabulações filosóficas I.

Puxo levemente as rédeas, há que conter a urgência de certezas. E se o mar se patentear revolto, então segurar-me-ei ao corpo para evitar naufrágio. É que não sei se sabes, mas é nas muralhas deste excelso e frágil corpo onde ela habita: a rainha de todas as apodícticas cortesãs. Até a deusa de olhos garços, Atena, se por cá ainda andasse, invejar-lhe-ia a força e a destreza com que ilude e abençoa os homens – criando-os e recreando-os com um sentimento de perenidade.

Nunca tive jeito para ser cocheiro, tampouco talento para a arte de bem conduzir ou dirigir seja o que fosse. A recta mestria da razão há muito que a alijei ao mar. Para além disso, a minha parelha de cavalos alados repousa quieta no prado do tempo, neste vestígio último e refúgio do sagrado. E se já não há metafísica que os faça galopar; se apenas ecoa o zurrar dos homens que na arena se gladiam pelo velho ceptro, almejando o trono abandonado, – então mais vale ficar por aqui, parado, ouvindo pacientemente o marulhar das ondas do mar.

De herança coube-me a minha própria indigência: a indelével lembrança de um nome sem rosto, e uma concha. Uma concha, onde trago a água desse rio que o silêncio baptizará com a sua própria voz e que sacia a sede deste meu rei - menino faminto e afoito, cheio de certezas - que ainda não aprendeu a nadar, nem a percontari, neste mar encapelado da vida.

Mas iremos juntos. Juntos ao fundo, e até ao fim. E não há teleologia que nos possa salvar. Quem sabe, se até lá, não aprenderemos a arte de dançar sobre as ondas do mar e se não a-guardaremos a noite, sob o luar da eternidade, a libar em nossas taças douradas o doce néctar de cor púrpura que faz de nós o mais estulto dos animais!

Ah, ostentemos ao alto as nossas conchas e brindemos ao porvir silente do tempo!

Assim Habito
Horácio

Em boa verdade, que é o nosso saber senão confiança temerária, aliada a um total ignorância?

Francisco Sanches, Comentário ao livro de Aristóteles Da Adivinhação pelo Sonho
Nota: Por motivos que desconheço o endereço http://a-fonte.blogspot.com/ foi-me surripiado, alojei “A fonte do Horácio” no novo endereço:

a Fonte do Horácio

Horácio

A fala é um gesto, e a sua significação um mundo

“ Vivemos em um mundo no qual a fala está instituída. Para todas essas falas banais, possuímos em nós mesmos significações já formadas. Elas só suscitam em nós pensamentos secundários; estes, por sua vez, traduzem-se em outras falas que não exigem de nós nenhum esforço verdadeiro de expressão e não exigirão de nossos ouvintes nenhum esforço de compreensão. Assim, a linguagem e a compreensão da linguagem parecem evidentes. O mundo linguístico e intersubjectivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de um mundo já falado e falante que reflectimos. Perdemos a consciência do que há de contingente na expressão e na comunicação, seja junto á criança que aprende a falar, seja junto ao escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, seja enfim junto a todos os que transformamos um certo silêncio em fala. Todavia, está muito claro que a fala constituída, tal como opera na vida quotidiana, supõe realizado o passo decisivo da expressão. Nossa visão sobre o homem continuará a ser superficial enquanto não remontarmos a essa origem, enquanto não reencontrarmos, sob ruído das falas, o silêncio primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe esse silêncio.
A fala é um gesto, e a sua significação um mundo.”

Merleau- Ponty, Fenomenologia da Percepção, Martins Fontes, 1999, p.250.

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